domingo, 30 de maio de 2010

Amigo

Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra «amigo».
.
«Amigo» é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!
.
«Amigo» (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
«Amigo» é o contrário de inimigo!
«Amigo» é o erro corrigido,
.
Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada.

«Amigo» é a solidão derrotada!

«Amigo» é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim, ca
Um espaço útil, um tempo fértil,

«Amigo» vai ser, é já uma grande festa!


AlexandreO’Neill, in No Reino da Dinamarca

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Para Ser Lido Mais Tarde

Um dia
quando já não vieres dizer-me Vem
jantar
.
quando já não tiveres dificuldade
em chegar ao puxador
da porta quando
.
já não vieres dizer-me Pai
vem ver os meus deveres
.
quando esta luz que trazes nos cabelos
já não escorrer nos papéis em que trabalho
.
para ti será o começo de tudo
.
Uma outra vida haverá talvez para os teus sonhos
um outro mundo acolherá talvez enfim a tua oferenda
.
Hás-de ter alguma impaciência enquanto falo
Ouvirás com encanto alguém que não conheço
nem talvez ainda exista neste instante
.
Mas para mim será já tão frio e já tão tarde
.
E nem mesmo uma lembrança amarga
ou doce ficará
desta hora redonda
em que ninguém repara



Mário Dionísio, in O Silêncio Voluntário, 1966

sábado, 15 de maio de 2010

Pequena Balada do Soldado Aliado

Irá....que....o seu dever é ir.
Irá....que....assim lhe ordenaram.
Irá....que....é lá que está o inimigo.
Irá....que....o regime tem de cair.
Irá....que....a democracia deve impor-se.
Irá....que....uma nova ordem é precisa.
Irá....que....a vontade do povo não conta.
Irá....que....a paz faz-se com a guerra.
Irá....que....os mortos deles não se choram.
Irá....que....os vivos deles não se importam.
Irá....que....os filhos deles não são seus.
Irá....que....um herói deve lá estar.
Irá....que....Deus está com ele.
Irá....que....Allah está com os outros.
.
Virá?
.
Joaquim Pessoa, in Os Poemas da Minha Vida

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Não Posso Adiar o Amor


Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas
.
Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio
.
Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação
.
Não posso adiar o coração.
.
António Ramos Rosa, in Viagem Através de uma Nebulosa, 1960


terça-feira, 11 de maio de 2010

Coisas, Pequenas Coisas




Fazer das coisas fracas um poema.


Uma árvore está quieta,
murcha, desprezada.
Mas se o poeta a levanta pelos cabelos
e lhe sopra os dedos,
ela volta a empertigar-se, renovada.
E tu, que não sabias o segredo,
perdes a vaidade.
Fora de ti há o mundo
e nele há tudo
que em ti não cabe.
.
Homem, até o barro tem poesia!
Olha as coisas com humildade.

Fernando Namora, in Mar de Sargaços, 1939

sexta-feira, 7 de maio de 2010

E Tudo Era Possível




Na minha juventude antes de ter saído
da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido
.
Chegava o mês de maio era tudo florido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido
.
E tudo se passava numa outra vida
e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer
.
Só sei que tinha o poder duma criança
entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer
.
Ruy Belo, in Obra Poética de Ruy Belo, vol. 1

sábado, 1 de maio de 2010

Lágrima de Preta



Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.
.
Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.
.
Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.
.
Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.
.
Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:
.
nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.
.
António Gedeão, in Máquina de Fogo, 1959