terça-feira, 27 de abril de 2010

E Por Vezes


E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos...... E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites ...... não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se envolam tantos anos

David Mourão-Ferreira, Matura Idade, 1973
.

domingo, 25 de abril de 2010

Num Ângulo Branco






O poeta que assim escreve, também ele viu o pássaro que
entrou aflito na sala de exame de Geometria Descritiva
– 18/07/2008 – na Escola Secundária Augusto Gomes.




Enquanto escolhes
visões novas do belo,

há um alvoroço da ave
que entrou à deriva

num ângulo branco,

na área mais viva
das respostas

que nem tu sabes dar.

J. Alberto de Oliveira

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Fim



- Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes -
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas.

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza:
A um morto nada se recusa,
E eu quero por força ir de burro...


Mário de Sá-Carneiro, Revista Athena, nº 2, 1924
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domingo, 18 de abril de 2010

As Mãos



Com mãos se faz a paz se faz a guerra.
Com mãos tudo se faz e se desfaz.
Com mãos se faz o poema – e são de terra.
Com mãos se faz a guerra – e são a paz.
Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.
Não são de pedras estas casas mas
de mãos. E estão no fruto e na palavra
as mãos que são o canto e são as armas.
E cravam-se no Tempo como farpas
as mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no vento: verdes harpas.
De mãos é cada flor cada cidade.
Ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade.


Manuel Alegre, O Canto e as Armas, 1967
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sábado, 17 de abril de 2010

Súplica


Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti, como de mim.
.
Perde-se a vida, a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz, seria
Matar a sede com água salgada.

Miguel Torga, in Câmara Ardente, 1962
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segunda-feira, 12 de abril de 2010

Porque



Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.



Sophia de Mello Breyner Andresen, in Mar Novo, 1958

.


e

sábado, 10 de abril de 2010

Urgentemente


É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.

Eugénio de Andrade, in Até Amanhã
.

Em forma de aviso à tripulação das Ondas Poéticas

Depois do prazer da (re)descoberta de algumas produções poéticas contemporâneas portuguesas, através de alguns textos analisados na disciplina de Literatura Portuguesa, surgiu-nos o impulso da partilha.
Temos consciência da dificuldade em encontrar as palavras que vêm depois do deslumbramento da leitura de alguns poemas. Já alguém disse que um poema não se explica, sente-se! Concordamos! Por isso, quando as palavras forem insuficientes, não faremos nenhum comentário. Talvez o embelezaremos com uma ou outra imagem, com uma ou outra música... Mas neste mar tudo será possível!